No rastro da mancha
A mancha escureceu tudo.
A mancha escureceu tudo.
Sem aviso, desembarcou na praia, entranhou-se na areia, se apossou das pedras, invadiu manguezais, soterrou os bichos e alarmou a gente.
Era 30 de agosto de 2019 quando ela tocou a costa da Paraíba. As tímidas notícias de então registravam que o óleo cru envelhecido surgira sem que houvesse nenhum alerta de derramamento de navios ou plataformas de extração de petróleo.
A mancha era imensurável.
Como uma espécie de impinge guiada pela maré, foi gradativamente tomando o litoral nordestino, tingindo de preto estado a estado, castigando o ecossistema e encurralando homens e mulheres que vivem do mar.
No curso das correntes marítimas, a mancha alcançou a Bahia. Era primeiro de outubro. Sob o olhar condescendente das autoridades de órgãos ambientais, se espalhou pelo Litoral Norte e invadiu a capital.
Navegando sob a linha de superfície, percorreu toda a costa baiana até chegar a Abrolhos, santuário que abriga a mais extensa bancada de corais e a maior biodiversidade marinha do Atlântico Sul.
A mancha não perdoa a inércia.
E esta só foi rompida por movimentos da sociedade civil: cidadãos e cidadãs comuns que dedicaram dias a fio à tarefa de arrancar o óleo das praias com as próprias mãos, colocando a saúde à prova.
No rastro da mancha, conheci Morbeck, cuja energia se multiplicava: ao mesmo tempo em que limpava as praias, direcionava o foco de suas lentes para a destruição.
Com suas fotografias, revelou cores e texturas de uma tragédia coletiva enfrentada sem descanso pela valentia de alguns. Na pausa de cada imagem, mora o documento que nos condena a todos por um crime que nem ao menos se sabe quem cometeu.
Enquanto os retratos do desastre viajavam o mundo, trabalhadores e trabalhadoras que tiram o sustento dos mares, estuários e mangues viram-se reféns de um monstro disforme e pegajoso – acontece que a realidade, nestes casos, aterroriza mais que qualquer ficção.
"Ninguém compra nada. Nada. É um desespero. Eu preciso alimentar minhas filhas. Vou jogar esse marisco fora? Não. Mas ninguém quer, o que é que eu vou fazer?", me disse, em total desamparo, a marisqueira Fabiana França.
Enquanto isso, em Brasília, o secretário da pesca do Ministério da Agricultura, herdeiro de uma indústria pesqueira e pouco preocupado com os pescadores artesanais, afirmava que “o peixe é um bicho inteligente”, que foge quando vê uma mancha de óleo.
A mancha pune o descaso.
O Ministério do Meio Ambiente nunca acionou de forma efetiva o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo (PNC), que foi criado em 2013 e deveria ser colocado em prática justamente em momentos como o de 2019.
A União chegou a ativar o Grupo de Acompanhamento e Avaliação (GAA), comandado pela Marinha. Por lei, este grupo deveria fazer valer o PNC e agregar todos os esforços, inclusive da sociedade civil, para conter o avanço a mancha. A lei nunca foi cumprida.
Nas principais cartilhas do mundo sobre derramamento de petróleo, a prioridade número 1 é conter a substância tóxica no mar. Naquele que se desenhou como o maior desastre na costa brasileira na história, o GAA adotou a estratégia de aguardar o óleo bater na praia para então limpar. Com o argumento de que a mancha se movia submersa, tentava justificar a inação.
Sem satélites ou equipamentos de ponta, utilizando apenas a boa observação e redes de malha fina, pescadores de Canavieiras, no Sul da Bahia, criaram seu próprio sistema de defesa e capturaram, no mar, manchas com dezenas de quilos de óleo, evitando que o contaminante invadisse algumas das maiores reservas de manguezal do país.
"Espero que nossa organização cause algum constrangimento no governo. Como é que pode ficar só esperando o óleo na praia?", questionava, à época, o pescador Carlos Alberto Pinto. Ninguém ficou constrangido.
Os meses passaram e as investigações da Marinha e da Polícia Federal não deram em nada. Análises laboratoriais atestam que aquele óleo foi extraído na Venezuela, mas, como ele veio parar em nossas praias? Ninguém sabe - ou não nos foi revelado.
Certo é que mais de 1.000 localidades costeiras foram atingidas, nos nove estados do Nordeste e, em menor grau, no Espírito Santo e Rio de Janeiro. Na infeliz balança, quase 6 mil toneladas de óleo cru foram recolhidas das praias, sem contar aí a parcela que se misturou ao ambiente e pode levar décadas para ser naturalmente degradada.
Mais de um ano após aquele primeiro registro na Paraíba, não é raro caminhar por uma praia do Nordeste e voltar com os pés manchados pelo crime e pela vergonha.
Vergonha agora inapagável, graças à memória coletiva e às fotos de Morbeck.
A mancha escureceu tudo.
Victor Uchôa
Jornalista e cineasta
Texto integrante do livro MARÉ DE AGOSTO, publicado em Abril/2021.
Texto integrante do livro MARÉ DE AGOSTO, publicado em Abril/2021.
Following the oil stain trail
The stain made everything dark.
The stain made everything dark.
Without warning, it got off on the beach, mixed with the sand, claimed the rocks, invaded mangroves, buried the animals and alarmed us all.
August 30, 2019 was the day the stain reached the coastline of Paraíba. Then still timid news reported that the aged crude oil had appeared without any warning of oil spill from ships or platforms.
The stain could not be measured.
Acting as some kind of ringworm guided by the tide, it gradually took over the northeastern coast, painting the states black one after the other, punishing the ecosystem and trapping men and women who depend on the sea for their survival.
In the flow of the sea currents, the stain reached Bahia. October 1st. Under the condescending eyes of environmental authorities, it spread across the North Coast and stormed the capital.
Sailing under the surface, it ran across the entire coastline of Bahia until it reached Abrolhos, a sanctuary with the most extensive coral reef and the largest marine biodiversity in the South Atlantic.
The stain does not forgive inaction.
As it turned out, civil society initiatives embraced the task: regular citizens spent several days struggling to remove the oil from the beaches, using their own hands while risking their own health.
Following the oil stain trail, I met Morbeck and his boosted energy: while cleaning the beaches, he focused his lens on the destruction around.
Through his photographs, he revealed colors and textures of a collective tragedy faced by brave and relentless people. The moments paused by each image harbour the record that condemns us all for an unsolved crime.
While portraits of the disaster traveled the world, workers who make a living from the ocean, estuaries and mangroves found themselves hostage to a distorted and sticky monster - in cases like this, reality is scarier than fiction.
"Nobody buys anything. Nothing. It is despairing. I need to feed my daughters. Am I going to throw this seafood away? No. But nobody wants it, what am I going to do?", seafood collector Fabiana França told me in total helplessness.
Meanwhile, in Brasília, the Secretary of Fisheries of the Ministry of Agriculture, heir to a fishing industry and little concerned with artisanal fishermen, said that "fishes are intelligent animals", that run away when they spot an oil stain.
The stain punishes neglect.
The Ministry of Environment has never put the National Contingency Plan for Oil Pollution Incidents (PNC) into effect. The plan was elaborated in 2013 and should be put into practice precisely at events such as the one that took place in 2019.
As a matter of fact, the Federal Government did activate the Grupo de Acompanhamento e Avaliação (GAA), a group for the monitoring and evaluation led by the Brazilian Navy. According to the law, such group should put PNC into practice and gather all efforts, including civil society initiatives, to stop the oil spill from advancing. The law was never applied.
The most important guidebooks of the world regarding oil spill indicate that the number one priority should be to control the toxic substance in the sea. In what would become the biggest disaster on the Brazilian coast in history, GAA decided to wait for the oil to reach the beaches before cleaning. Arguing that the stain was moving underwater, in an attempt to justify inaction.
With no satellites or state-of-the-art equipment, with only good eyes and fine mesh nets, fishermen from Canavieiras, in the south of Bahia, created their own defense system and captured tens of kilos of oil in the sea, preventing the contamination of some of the largest mangrove reserves in the country.
"I hope that our organization will cause some embarrassment to the government. How can you just wait for the oil on the beach?", Carlos Alberto Pinto, a fisherman, asked at the time. Nobody was embarrassed.
Time passed and the investigations conducted by the Navy and the Federal Police resulted in nothing. Laboratory tests attest that the oil was extracted in Venezuela, but how did it end up on our beaches? Nobody knows - or it hasn't been shared with us.
What we do know is that more than 1,000 coastal locations were affected, in the nine states of the Northeast and, to a lesser extent, in Espírito Santo and Rio de Janeiro. Almost 6 thousand tons of crude oil were removed from the beaches, not to mention the oil mixed with the environment and that will possibly take decades to be naturally degraded.
More than one year after the spill was first spotted in Paraíba, walking along a Northeastern beach and then noticing the feet stained by the crime and shame is not that unusual.
Now such shame will never fade away, thanks to collective memory and to Morbeck's photos.
The stain made everything dark.
Victor Uchôa
Journalist and Filmmaker
Journalist and Filmmaker
Text included in the book AUGUST TIDE, published in April/2021.